A primeira medalha de ouro mundial do setor feminino do atletismo português, 13.ª do panorama luso internacional, foi conquistada por Aurora Cunha, faz terça-feira 30 anos, no Campeonato do Mundo de Estrada, em Madrid.
“Foi uma medalha que teve um peso muito importante para mim e que mudou por completo a minha carreira como atleta, pois foi a conquista que tinha faltado nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, uns meses antes, em que fui finalista nos 3.000 metros”, referiu à agência Lusa Aurora Cunha, que então era atleta do FC Porto.
No regresso de Los Angeles, Aurora Cunha decidiu arriscar tudo na segunda edição do Campeonato do Mundo de Estrada, em Madrid, na distância de 10.000 metros, que contou pela primeira vez com uma seleção portuguesa, que integrava ainda Rosa Mota (CAP), segunda na prova, Conceição Ferreira (Sporting de Braga), 29.ª, e Rita Borralho (Benfica), que desistiu.
“Em vez de fazer férias, treinei. Arrisquei tudo. Sabia que, apesar da qualidade das atletas presentes, podia ficar nas três primeiras posições, mas, quando parti do Porto, ia com a convicção de que iria ser campeã do mundo, porque tinha trabalhado para isso”, referiu a antiga atleta.
Aurora Cunha, nascida há 55 anos em Ronfe, Guimarães, uma das bandeiras do atletismo do FC Porto (defendeu nos primeiros tempos as cores do Juventude de Ronfe e no final da carreira a Terbel), recorda passo a passo o percurso traçado num circuito à volta do Estádio Santiago Bernabéu, do Real Madrid, e o enorme orgulho que sentiu ao cortar a meta na primeira posição.
“Só me apercebi do feito que tinha acabado de alcançar quando cheguei ao hotel e quando começaram a aparecer as mensagens de parabéns, nomeadamente de Ramalho Eanes (Presidente da República) e Mário Soares (primeiro-ministro), a felicitar-me pelo que tinha conquistado para Portugal”, recorda.
De regresso ao Porto, na segunda-feira seguinte, Aurora Cunha tomou consciência, durante o banho de multidão de que foi alvo, do virar de página na sua carreira desportiva, que não mais seria a mesma, até porque renovou o título mundial de estrada em 1985, em Gateshead, e em 1986, em Lisboa, alcançando o “tri”.
“Com a conquista do primeiro campeonato do mundo a minha vida mudou por completo em termos de presenças em meetings, porque era atleta de pista e tinha acesso a todas as provas. Não se ganhava muito dinheiro, mas ganhava-se algum”, explica.
Aurora Cunha recorda que a vitória em Madrid foi a primeira de uma série que incluiu, por exemplo, a conquista da medalha de ouro dos 10 mil metros da Taça do Mundo de Pista, em 1985, em Camberra, prova para a qual a atleta portuguesa tinha sido escolhida para representar a seleção da europa.
“Depois, em novembro, voltei a ganhar o Mundial de Estrada, pelo segundo ano consecutivo (com Conceição Ferreira, 29.ª, Lucília Soares, 53.ª, e Albertina Machado, 53.ª na equipa), ainda na distância de 10 mil metros, e depois conquistei o terceiro título na mesma prova, por teimosia minha, desde vez já em 15 quilómetros, em Portugal, em que voltei a apostar tudo”, recorda Aurora Cunha.
A antiga atleta portista recorda o circuito traçado na zona de Algés, em Lisboa, que contou com a presença de mais de 30 mil pessoas a aplaudir e a puxar pelas atletas portuguesas ao longo do percurso.
“Foi um momento histórico para Portugal e para mim, pois consegui fazer o tri. Fui a primeira atleta a conseguir vencer três campeonatos mundiais de estradas seguidos e sinto-me orgulhosa desse feito”, explica Aurora Cunha.
Em termos de balanço da sua carreira de 20 anos de alta competição, quase exclusivamente a defender as cores do FC Porto, Aurora Cunha lamenta apenas não ter conseguido alcançar o pódio olímpico, o sonho de qualquer atleta.
“Todos os atletas têm que saber viver com o que conseguiram conquistar ao longo da sua carreira desportiva”, defendeu Aurora Cunha, acrescentando que, em sua opinião, foi a atleta mais regular enquanto esteve ligada à alta competição.
A antiga atleta recorda que, depois de ter nascido para o atletismo no meio-fundo e no corta-mato, apostou na parte final da sua carreira na maratona, ganhando quatro das mais importantes do mundo (Paris, 1988, Tóquio, 1988, Chicago, 1990, e Roterdão, 1992).
“Falhei naqueles momentos que não se deve falhar. Nos Jogos Olímpicos de Seul (Coreia do Sul, em 1988), e nos de Barcelona (Espanha, em 1992), em que o fator sorte, ou a falta dela, foi importantíssimo, mas também os azares que me apoquentaram”, disse.
Mas, Aurora Cunha assegura que não está arrependida de ter tomada as opções que tomou, embora reconheça que nos Jogos Olímpicos de Seul’88 e Barcelona’92 não voltaria a cometer os mesmos erros, que ditaram a desistência da maratona.
“Tenho é que ser feliz e de me lembrar de tudo o que conquistei ao longo de 20 anos ao mais alto nível”, reconheceu, apontando a "mágoa" de verificar que alguns dos feitos do atletismo português estão a cair no esquecimento por "falta de se transmitir a mensagem às gerações mais novas".
Aurora Cunha assegura que foi uma atleta "perseguida" pela Federação Portuguesa de Atletismo e recorda que em 1988 foi sem o seu treinador para os Jogos Olímpicos de Seul.
“Hoje, vão os treinadores, psicólogos, nutricionistas e no meu tempo nem o Fonseca e Costa (treinador) me pode acompanhar. Falhei em Seul’88 por falta de experiência, mas também por falta de acompanhamento”, garante.
Quatro anos volvidos, obrigada a desistir durante a maratona dos Jogos Olímpicos de Barcelona’92, com uma insolação, Aurora Cunha reconhece que falhou, mas ganhou o que de mais "precioso e valioso possui na vida", que é a sua filha.
“Falhei a maratona, mas ganhei a minha filha, porque passadas três semanas vim a saber que estava grávida. Não conquistei o lugar que gostaria de ter conseguido, mas conquistei aquilo que é mais importante do que as medalhas, que foi a minha filha”, explica.
Aurora Cunha refere, a título de brincadeira, que a filha já esteve nos Jogos Olímpicos e também esse “é um motivo de orgulho e de enorme satisfação” e não esconde o facto de reconhecer que sempre se sentia com capacidade para chegar ao pódio olímpico.
“Depois das maratonas que ganhei ambicionava por um lugar no pódio nos Jogos, mas não posso viver obcecada pelo que não consegui ganhar mas sim estar orgulhosa de tudo o que ganhei. É isso que me importa. Sou a única atleta que pode comemorar três títulos mundiais”, sustenta.
Os mundiais de estrada viriam a transformar-se em 1992 no Campeonato do Mundo de Meia-Maratona e apenas por mais uma vez se assistiu a um triunfo luso, com Conceição Ferreira a ser a primeira em 1993, em Bruxelas.
Aurora Cunha vive intensamente a sua paixão pelo FC Porto e recorda o facto de a medalha que agora comemora 30 anos, conquistada em Madrid, ter sido a primeira de ouro mundial que deu ao clube e ao seu presidente, Jorge Nuno Pinto da Costa.
“Foi a primeira medalha que dei ao FC Porto, que até 1987 viveu um bocadinho destes meus títulos, que partilhei com a sua massa associativa, e foi o primeiro grande título de Pinto da Costa. Lembro-me da festa que foi a minha chegada ao Porto”, recorda.
Em jeito de balanço de 20 anos de alta competição, afirma sentir-se orgulhosa da carreira que tem e recorda como o momento que mais gozo lhe deu e orgulho a conquista o terceiro título do Mundial de estrada em Lisboa, então com Rosa Mota a voltar a ser segunda, completando-se a equipa com Albertina Dias (21.ª) e Lucília Soares (44.ª).
“É evidente que há outros títulos e conquistas que me deram enorme gozo, como as vitórias nas são silvestres, mas alcançar o tri em Lisboa, no meu país, perante 30 mil portugueses a aplaudir, é dos momentos que recordo com mais saudades desse tempo”, garante Aurora Cunha.