O Tribunal de Contas (TdC) detetou a realização de contratos sem cobertura legal do Belenenses e do Boavista com a Segurança Social para a regularização de dívidas usando passes de jogadores de futebol.
De acordo com um anteprojeto de parecer sobre a Conta da Segurança Social de 2015, a que a Lusa teve acesso, foram celebrados "contratos de dação em cumprimento" entre aqueles dois clubes da I Liga portuguesa de futebol e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS).
Na sequência destes contratos, as Sociedades Anónimas Desportivas (SAD) entregaram ao IGFSS 50% dos direitos económicos inerentes aos jogadores, até ao final da época desportiva, para pagamento de parte da sua dívida à Segurança Social.
Se a cedência dos direitos desportivos não se concretizar, a SAD obriga-se a recomprar ao IGFSS os direitos económicos sobre o jogador pelo valor da dação em cumprimento acrescido de juros à taxa estabelecida no regime geral dos juros de mora para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.
O incumprimento pela SAD de qualquer das obrigações previstas no contrato implica o pagamento ao IGFSS de uma indemnização de um milhão de euros.
A SAD mantém os direitos desportivos sobre o jogador assumindo o cumprimento de todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho e tem o dever de comunicar ao jogador "a dação em pagamento" dos seus direitos económicos.
"Da análise dos contratos verifica-se que alguns podem atingir cerca de três anos e sete meses", diz o documento do TdC, a que a Lusa teve acesso.
O artigo 196.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social prevê a possibilidade de a Segurança Social aceitar, "como dação em pagamento", bens móveis ou imóveis, como contrapartida da extinção total ou parcial de dívidas vencidas de contribuintes.
Os bens em causa têm de ser objeto de avaliação pela instituição competente, neste caso o IGFSS, passando a integrar o património deste instituto.
"No caso presente, não estamos perante a dação de um bem móvel ou imóvel, na aceção dos artigos 204.º e 205.º do Código Civil", considera o TdC, salientando que o objeto da dação é o passe dos jogadores.
Por isso, o TdC defende que "o objeto legal das dações em pagamento suscetíveis de aceitação por parte da Segurança Social não inclui (...) quaisquer direitos, pelo que não existe cobertura legal para a aceitação destas dações em pagamento".
O documento do TdC refere, a propósito, um Acórdão da Relação de Lisboa, de 20/05/2009, que considera que "a titularidade do ‘passe’ de um jogador profissional de futebol não representa um crédito certo, líquido e imediatamente exigível (...), já que o direito de cedência ou transferência de um praticante desportivo apenas confere ao seu titular a expectativa de uma eventual receita".
"Mostra-se igualmente incumprida a norma que determina a necessidade de avaliação dos bens sujeitos a dação por parte do IGFSS", considera o TdC, salientando que os negócios em causa "nunca seriam suscetíveis de acautelar os interesses da Segurança Social.
Pelas razões referidas, o TdC considerou que a cobrabilidade da dívida dos clubes à Segurança Social por via destas dações "mostra-se, pois, pouco viável".
"A aceitação das aludidas dações em pagamento por parte da Segurança Social é, pelas ilegalidades já mencionadas, suscetível de fazer incorrer os seus responsáveis em eventual responsabilidade financeira sancionatória", é defendido no anteprojeto de parecer.
O TdC lembra ainda que "a dação em cumprimento é um negócio definitivo, que se cumpre com a transmissão para a esfera jurídica do credor do bem que substitui o pagamento da dívida", considerando o tribunal que este requisito não é cumprido no caso em análise.
Questionada sobre estes contratos, fonte oficial do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) esclareceu à Lusa que a questão se circunscreve ao período em análise, tendo a mesma sido identificada pelo TdC em sede de relatório preliminar sobre a Conta da Segurança Social de 2015, encontrando-se em fase de contraditório.
“Nesse âmbito o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. respondeu ao Tribunal de Contas, cabendo a este a emissão do relatório final. Neste contexto e neste momento não pretende o MTSSS efetuar quaisquer comentários adicionais", refere.
Contactados pela Lusa, os dois clubes recusam a ideia de terem praticado qualquer ilegalidade, alegando o administrador da SAD do Belenenses Carlos Soares que esta solução foi sugerida pela Segurança Social.