A ex-eurodeputada socialista Ana Gomes criticou hoje a «ironia» que foi Lisboa acolher a Web Summit com a abertura a cargo do norte-americano Edward Snowden, quando Rui Pinto está em prisão preventiva em Portugal há sete meses, por também ser «denunciante».
Em entrevista à agência Lusa, depois de hoje ter visitado a Web Summit e no mesmo dia em que foi conhecido que a instrução do processo de Rui Pinto, criador do Football Leaks, acusado de 147 crimes de acesso ilegítimo, violação de correspondência, sabotagem informática e tentativa de extorsão, começa em 12 de dezembro.
“Não é uma ironia Portugal ser o anfitrião de uma Web Summit, que está aqui a discutir os problemas da proteção de dados, e um fundamental denunciante, português, como Rui Pinto estar na prisão? A mesma Web Summit que abre com o denunciante Edward Snowden, reconhecido pelo extraordinário serviço que prestou com a denúncia? É o país que tem em prisão preventiva há sete meses um jovem que teve um papel fundamental como denunciante a expor corrupção no futebol e não só”, afirmou a socialista.
O norte-americano que denunciou as práticas de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA, Edward Snowden, participou na segunda-feira na abertura da Web Summit, que decorre até 07 de novembro no Parque das Nações, em Lisboa.
Snowden participou por videoconferência, uma vez que se encontra asilado na Rússia, para onde fugiu depois de ter revelado informação confidencial e ser procurado pela justiça norte-americana.
“É uma vergonha que Portugal ou qualquer outro país europeu não tenha dado refúgio a Edward Snowden até hoje, e que ele esteja obrigado a estar num país como a Rússia, que não é minimamente recomendável para dar proteção a um denunciante”, criticou ainda Ana Gomes, enquanto comparava a situação do norte-americano com a de Rui Pinto, preso em Portugal.
“Infelizmente, até este momento, ainda não vi, não tenho notícia, nenhuma investigação levada a cabo pelas autoridades portuguesas na base dessas informações de Rui Pinto, não obstante as autoridades de outros países já terem recuperado milhões à conta de informações publicadas por Rui Pinto”, disse ainda a antiga eurodeputada.
Defende que “independentemente das razões” que levaram a Justiça portuguesa a querer julgar Rui Pinto e o tipo de crimes que lhe imputa, “muito mais importante são os crimes” que este expôs: "Criminalidade organizada, financeira, fiscal e outras".
Em prisão preventiva desde 22 de março deste ano, Rui Pinto, de 30 anos, foi detido na Hungria e entregue às autoridades portuguesas, com base num mandado de detenção europeu (MDE), que apenas abrangia os acessos ilegais aos sistemas informáticos do Sporting e da Doyen.
Insistindo que a prisão preventiva de Rui Pinto “é um absurdo, um contrassenso e uma vergonha para Portugal”, Ana Gomes aponta que essa detenção é também “intolerável”, alegando que apenas um dos 147 crimes que lhe são imputados “daria justificação para a prisão preventiva”.
“Faço a pergunta ao Ministério Público de Portugal. Quantos indivíduos acusados de extorsão na forma tentada estão ou estiveram presos em prisão preventiva em Portugal?”, questionou Ana Gomes.
Na entrevista à Lusa, a antiga diplomata e dirigente socialista assume a defesa pública de Rui Pinto por considerar tratar-se de um “dever de cidadania”.
“Podia ficar caladinha e quieta, sem preocupações e sem incómodos”, ironizou.
Sobre o julgamento de Rui Pinto, depois de conhecida hoje a data da fase instrutória do processo, Ana Gomes admite que, como em outros poderes, também a justiça em Portugal está “capturada” por interesses. Ainda assim, prefere acreditar num julgamento justo.
“Mas também sei que há muita gente boa, séria e com vontade de não ceder perante a corrupção. Portanto, eu ainda acredito que o Rui Pinto pode ter um julgamento justo. Se eu deixasse de acreditar nisso, então acho que desistia do país”, concluiu.
Fonte judicial explicou hoje à Lusa que a juíza de instrução criminal (JIC) apenas agendou para 12 de dezembro diligências instrutórias, como o interrogatório ao advogado Aníbal Pinto (que no requerimento de abertura de instrução pediu para ser ouvido), e debate instrutório, após os quais deverá marcar data para a leitura da decisão instrutória sobre o caso de Rui Pinto.
A instrução, fase facultativa que visa decidir por um JIC se o processo segue e em que moldes para julgamento, foi requerida pela defesa dos dois arguidos no processo, Rui Pinto e o advogado Aníbal Pinto, e vai decorrer no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, no Campus da Justiça.
O crime de extorsão, na forma tentada, diz respeito à tentativa de extorsão à Doyen (de entre 500 mil e um milhão de euros), levada a cabo por Rui Pinto na manhã de 03 de outubro de 2015, com a intermediação do advogado Aníbal Pinto.
Em 19 de setembro, o Ministério Público (MP) acusou Rui Pinto de 147 crimes, 75 dos quais de acesso ilegítimo, 70 de violação de correspondência, sete deles agravados, um de sabotagem informática e um de tentativa de extorsão, por aceder aos sistemas informáticos do Sporting, do fundo de investimento Doyen, da sociedade de advogados PLMJ, da Federação Portuguesa de Futebol e da Procuradoria-Geral da República, e posterior divulgação de dezenas de documentos confidenciais destas entidades.
A sociedade de advogados PLMJ fez parte da defesa do Benfica no processo conhecido como 'e-toupeira'.
No dia seguinte, em 20 de setembro, a defesa do arguido considerou que a acusação do MP “contém numerosas falsidades, nulidades e ilegalidades”, visando “silenciar e destruir” o criador do Football Leaks.
A acusação do MP, a que a Lusa teve acesso, diz que, entre 06 de novembro de 2018 e 07 de janeiro de 2019, o arguido "efetuou um total de 307 acessos” à Procuradoria-Geral da República, e obteve documentos dos processos de Tancos, BES e Operação Marquês, entre outros.
Entre janeiro de 2018 e janeiro de 2019, Rui Pinto consultou mais 12 processos que ainda estão em segredo de justiça.