Um jurista angolano considera que a proposta da Lei de Bases da Proteção Civil tem medidas que afetam direitos dos cidadãos e poderá ser declarada inconstitucional, sublinhando que o estado de emergência tem “elasticidade” suficiente para ser suavizado.
O parlamento angolano interrompeu hoje uma reunião plenária para discutir, na especialidade, “com urgência” a proposta de alteração da Lei de Bases da Proteção Civil, que contempla a declaração de situação de catástrofe ou calamidade e que será levada à votação final na sexta-feira.
A declaração do estado de calamidade poderá ser aplicada em Angola findo o período de estado de emergência para conter a propagação do novo coronavírus, que está na terceira prorrogação e se prolonga até 25 de maio.
Em declarações à Lusa, o constitucionalista Leandro Ferreira admitiu que as questões que os deputados possam suscitar sobre a constitucionalidade do diploma são “legítimas”, mas face ao “momento difícil” que Angola atravessa, tal como outros países, entende que a proposta vai mesmo ser aprovada.
No entanto, considerou que “tão logo sejam superadas as circunstâncias” que justificam a sua aprovação, o diploma “vai cair” e ser declarado inconstitucional.
“Penso que a urgência tem a ver com o facto de o Governo querer tomar determinadas medidas e definir o futuro, mas as exorbitâncias do diploma são claras”, sublinhou Leandro Ferreira, apontando nomeadamente as medidas contidas nos artigos 4.º (medidas) e 11.º (formulação e execução da política de proteção civil).
“O que se está a propor é praticamente o mesmo pacote de medidas que foram tomadas no estado de emergência, serve como uma luva”, notou.
O artigo 4.º prevê, por exemplo, que com a declaração da situação de calamidade ou catástrofe, o titular do poder executivo (João Lourenço) possa tomar medidas que incidam sobre o funcionamento de instituições públicas e privadas, mercados, exercício da atividade comercial, atividades que envolvam participação massiva de cidadãos, funcionamento dos transportes coletivos, creches e escolas, atividades religiosas, desportivas e de lazer, entre outras, enunciou.
“Há o risco de inconstitucionalidade tendo em conta que este procedimento é mais frágil do que o que exige a Constituição”, frisou o especialista.
A Constituição angolana estipula que os direitos fundamentais dos cidadãos não podem ser afetados, salvo em circunstâncias concretas e tipificadas, como o estado de sítio, de emergência e de guerra, cuja declaração deve cumprir uma série de formalidades.
“Aqui há uma situação clara de inconstitucionalidade porque a declaração de um destes estados que pode suspender direitos, liberdades e garantias dos cidadãos está sujeita ao pronunciamento e controlo do poder parlamentar”, adiantou Leandro Ferreira.
Segundo o jurista, “não é o estado de calamidade em si que é inconstitucional”, o problema são as medidas que afetam “inquestionavelmente direitos fundamentais”, que definiu como “normas exorbitantes”, que podem ser postas em prática sem estar sujeitas à intervenção do parlamento nem numa fase prévia, nem posterior.
Para Leandro Ferreira, a intenção do Governo poderá ser adotar menos restrições, com o país a atingir quase dois meses desde o início da declaração do estado de emergência, ganhando margem de manobra para tomar medidas ajustáveis no quotidiano.
No entanto, considerou que se poderia evoluir para um estado de emergência mais brando, no âmbito da mesma figura jurídica, pois tem uma “elasticidade muito grande”.
Outra opção seria alterar a Constituição e inserir uma figura autónoma, como o estado de calamidade ou de catástrofe, sugeriu.
O parlamento angolano aprovou na quarta-feira, na generalidade e com caráter de urgência, a proposta de alteração da lei, agora em discussão na especialidade, que segundo as autoridades está também "parcialmente desajustado da Constituição".
No seu relatório de fundamentação, as autoridades angolanas afirmam que a Lei de Bases da Proteção Civil, em vigor, "não atribui ferramentas suficientes ao titular do poder executivo para pôr em prática um eficaz sistema de preparação e resposta ante situações de grave risco coletivo, catástrofe ou calamidades".
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