O médico português Tiago Martins Branco, que no ano passado esteve a tratar doentes de covid-19 na Serra Leoa, defende que as recomendações médicas internacionais devem ter mais em atenção as condições dos países pobres.
"As recomendações de organismos internacionais [sobre a pandemia] aplicam-se essencialmente a países com altos rendimentos, que conseguem ter recursos e construir coisas do zero, e têm todos os recursos humanos e materiais para das a melhor resposta a esta pandemia", disse o médico.
Tiago Martins Branco, que passou sete meses do ano passado a tratar doentes com covid-19 num hospital no centro da Serra Leoa, contou, em entrevista à agência Lusa, como "muitas vezes" foi preciso contornar as recomendações, com impactos no cuidado prestado aos doentes.
Por exemplo, as orientações internacionais recomendam o uso de sistemas de pressão negativa para arejar os centros de tratamento de doentes com covid-19.
"Basicamente, o que podíamos fazer era abrir as janelas", disse.
No mesmo sentido, nos tratamentos, a recomendação é que o doente faça "uma bateria de testes" à entrada, "o que é impossível" na Serra Leoa, apontou, sublinhando que é igualmente "impossível usar tratamentos experimentais" por falta de acesso a esses medicamentos.
"Vigilância de doentes, rácio de enfermeiros por doente, conhecimento médico para tratar doentes em cuidados intensivos, tudo isso que vem nas recomendações, nós não conseguíamos fazer", reforçou.
Por isso, em parceria com vários colegas, escreveu um artigo intitulado "Se não tens o ideal, o que tens torna-se ideal" (numa tradução livre do inglês 'COVID-19 treatment in sub-Saharan Africa: If the best is not available, the available becomes the best') que publicou no Travel Medicine and Infectious Disease Journal.
"A nossa razão para escrever o artigo foi dizer às pessoas que fazem essas recomendações para terem em conta os países de baixos rendimentos e para mostrar a outros colegas que estão em situações semelhantes, as alternativas que nós arranjamos e que podem ser alguma ajuda para eles solucionarem problemas", disse.
"Vimos que havia essa lacuna, essa falta de recomendações e foi uma tentativa nossa de dizer: Estamos aqui, estamos mal e esta é a forma de conseguir responder à pandemia", acrescentou.
Para Tiago Martins Branco, é fundamental deixar um "alerta para as instituições internacionais que fazem essas recomendações para começarem a ter em conta que muitas vezes o ideal não é possível e o que é possível torna-se o ideal".
Admitindo que as recomendações têm de ser gerais, defendeu que a Organização Mundial de Saúde (OMS) poderia "fazer uma versão para países com altos rendimentos e outra para países com baixos rendimentos".
Na entrevista à agência Lusa, Tiago Martins Branco antecipou também dificuldades na vacinação chegada e distribuição das vacinas em África e em particular na Serra Leoa.
"As vacinas vão chegar muito mais tarde. A forma de propagação do vírus é diferente, mas vai haver sempre um atraso enorme e a distribuição da vacina vai ser muito complicada, especialmente estas vacinas que precisam de uma cadeia de frio segura e forte", disse.
"Pelo que vi, na Serra Leoa vai ser bastante complicado vacinar as pessoas", acrescentou.
Tiago Martins Branco tem 29 anos é especializado em medicina interna, trabalha no hospital de Faro e está a fazer uma tese de mestrado em Saúde Tropical no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), da Universidade Nova de Lisboa.