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Covid-19: Mitos religiosos e ‘fake news’ afetam vacinação de indígenas no Brasil

Mitos religiosos e 'fake news' têm deixado indígenas brasileiros apreensivos no momento de serem vacinados contra a covid-19, com receio de se tornarem "jacarés" ou de "receberem o sinal da besta", relatou à Lusa a nativa Vanda Ortega.

Covid-19: Mitos religiosos e ‘fake news’ afetam vacinação de indígenas no Brasil
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Apesar de em muitas aldeias indígenas da Amazónia não haver sinal de rede móvel nem acesso à Internet, o "passa palavra" acaba por ser um método mais rápido e eficaz, com as notícias falsas sobre a imunização a atravessar gerações e a consolidar medos.

Vanda Ortega, do povo Witoto, professora e técnica de enfermagem que atua na linha de frente no combate à pandemia em Manaus, foi a primeira indígena a ser imunizada contra a covid-19 no estado do Amazonas, garantindo que aceitou o convite com o intuito de desmistificar todas as crenças em torno da vacina e assumiu que também tinha os seus medos.

"Quando fui convidada para ser vacinada, com certeza surgiu aquele medo diante de tantas notícias contra o imunizante, que nos deixa realmente preocupados. Mas, ali eu percebi uma grande oportunidade de representar os povos indígenas e, sobretudo, encorajar os nossos parentes que estão com muito medo da vacina devido a discursos produzidos dentro das aldeias. Foi um ato de muita coragem, de luta e resistência, mesmo diante dos medos que eu carregava", admitiu a técnica de enfermagem.

Entre as principais notícias falsas que circulam entre os povos nativos está a de que a vacina pode transformar pessoas em "jacarés", um mito levantado pelo próprio Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

Em dezembro, o chefe de Estado questionou os possíveis efeitos colaterais das vacinas contra o coronavírus, dando como exemplo a da Pfizer/BioNtec, afirmando que não há garantia de que ela não transformará quem a tomar “num jacaré”.

"Lá, no contrato da Pfizer, está bem claro: nós [a Pfizer] não nos responsabilizamos por qualquer efeito secundário. Se você se tornar num jacaré, o problema é seu", publicou Bolsonaro na rede social Twitter, na ocasião.

Mitos envolvendo religião também circulam pelas aldeias do Amazonas, difundidos por religiosos evangelizadores, que alertam que os indígenas que tomarem o imunizante ficarão marcados com "o sinal da besta", uma profecia associada à Escritura Sagrada Judaico-Cristã.

"Tenho percebido, principalmente dentro das nossas aldeias, discursos de muitos religiosos com campanhas contra a vacina. Esse é um dos principais desafios para a nossa população ser vacinada. Os indígenas não estão a aceitar a vacina devido a discursos como o sinal da besta ou com receio de se tornarem jacarés. Ouço imensos mitos desse género", explicou à Lusa Vanda Ortega.

Vanda contou ainda que, após ter sido vacinada, recebeu muitas perguntas vindas dos seus parentes do interior do Amazonas, que a questionaram se tinha "virado jacaré": "Foi uma situação absurda", detalhou.

Contudo, não é são só os mitos e 'fake news' que preocupam a técnica de enfermagem em relação à vacinação dos povos nativos.

Vanda considera "extremamente grave" o facto de o Governo brasileiro apenas considerar prioritários para a imunização os indígenas que vivem em aldeias, deixando de fora os nativos que vivem em contexto urbano.

"Isso é extremamente grave porque, segundo o Ministério da Saúde, apenas 410 mil indígenas serão vacinados contra a covid-19 neste primeiro momento como prioritários. Mas, somos cerca de um milhão de indígenas espalhados por todo o país e mais de metade está fora dessa prioridade", denunciou a docente.

"Esta vacina é importante para os indígenas em qualquer espaço, principalmente os que estão fora dos seus territórios, justamente por causa dessa marginalização. Já temos tanta precariedade nas aldeias, e quando saímos delas, por vários fatores, enfrentamos uma marginalização muito cruel, a perda de identidade cai muito fortemente sob os nossos corpos. As populações indígenas em contexto urbano estão muito mais vulneráveis económica e socialmente", assegurou Vanda Ortega.

Até à última quinta-feira, o Brasil já tinha vacinado 37% dos 410 mil indígenas adultos residentes em aldeias, principalmente na Amazónia. Segundo o Ministério da Saúde, a vacinação dos povos nativos em áreas urbanas é de responsabilidade das secretarias municipais e regionais de saúde.

"Assim que o indígena sai das aldeias, ele fica desassistido e não é reconhecido enquanto indígena", lamentou Vanda, frisando que tem lutado muito "para que se garanta a vacina para esses parentes".

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que inclui as populações que vivem em áreas urbanas nas suas estatísticas, contabilizou até quarta-feira 47.752 infeções e 948 mortes por covid-19, num total de 161 grupos étnicos afetados.

O Brasil é o país lusófono mais afetado pela pandemia e um dos mais atingidos no mundo, ao contabilizar o segundo maior número de mortos (230.034, em mais de 9,4 milhões de casos), depois dos Estados Unidos.

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