A pandemia de covid-19 veio mudar hábitos dos portugueses e fez aumentar os pedidos de refeições para entrega em casa, com estafetas de mochila quadrada e colorida às costas, em motas e bicicletas, em diferentes zonas do país.
Se antes da pandemia os estafetas (ou ‘riders’) já eram visíveis nas maiores cidades, durante os confinamentos foram a ‘salvação’ de muitos ao entregar em casa refeições prontas dos mais variados restaurantes e, posteriormente, produtos também de mercearias.
Glovo, Bolt Food e Uber Eats, aplicações digitais que operam no mercado nacional entregando refeições e outros bens através de estafetas, foram unânimes ao afirmar, em resposta à Lusa, tratar-se de uma prática que os portugueses abraçaram durante a pandemia e que veio para ficar.
“Os hábitos dos portugueses mudaram por completo nos últimos quatro-cinco anos. A pandemia veio acelerar esta mudança, mas a verdade é que continuamos a crescer mesmo em alturas sem restrições”, disse fonte da Glovo.
Fonte oficial da Uber Eats em Portugal referiu também que o pedido de refeições através das aplicações “é um hábito que veio para ficar”: “Os últimos dois anos aceleraram a digitalização das mais diversas empresas ou setores, e a restauração não foi exceção. Por ser uma evolução que obviamente exige adaptações, abriu também a porta a inúmeras oportunidades de crescimento.”
David Silva, responsável pela Bolt Food Portugal, acredita que os setores do retalho e da restauração “nunca mais serão os mesmos” e que as entregas de comida e mercearias em casa “não só vieram para ficar, como vão ainda crescer mais”.
“São cada vez mais o número de mochilas coloridas que circulam pelos grandes centros urbanos, pertencentes aos diferentes operadores, também em crescimento”, frisou.
Segundo as três plataformas, apesar de nenhuma ter avançado com números, em relação a 2019 houve um “aumento significativo” de entregas motivado pelo número crescente de pessoas em isolamento, um aumento que se refletiu no número de estafetas.
A história de André, de 42 anos, é um pouco parecida com alguns companheiros que partilham consigo o ponto de espera nas traseiras de uma grande superfície comercial às portas de Lisboa. Tinha um emprego, mas foi demitido aquando do primeiro confinamento. Ficou os três primeiros meses em casa e em maio de 2020 começou a trabalhar para a Uber Eats.
“Fomos dos poucos que andámos na rua, mas não senti medo. Tomei sempre as precauções todas de higiene, com álcool gel e as orientações de saúde [Direção-Geral de Saúde]. Era até uma altura melhor para andar, com poucos carros na rua, eram só estafetas a levar as refeições, era mais tranquilo circular”, explicou à Lusa.
André contou que quando começou “atendia a mais pedidos”, talvez porque “havia menos estafetas na rua”. Agora, considera que a quantidade de pedidos “talvez continue na mesma média”, mas como há mais pessoas a fazer entregas o trabalho está mais repartido.
“Já não é igual a quando comecei”, frisou, referindo, ainda assim, que continua a compensar. Critica somente as relações laborais, já que há seis meses sofreu um acidente e ficou “desamparado” e por sua conta.
Em Portugal não existe uma lei específica para o serviço destas plataformas de entregas (em que os estafetas são designados como parceiros, trabalhando sobretudo por conta própria). O Governo apresentou aos parceiros sociais linhas de reflexão sobre eventuais medidas a adotar através do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, mas com o chumbo do Orçamento do Estado e a consequente ‘queda’ do executivo o processo ficou parado.
Patrick tem 23 anos e começou a trabalhar nas entregas em 2019, ainda antes da pandemia. Disse à Lusa haver “pontos bons e maus”, apontando como negativo a falta de um contrato “como deve ser”, pois em caso de acidentes o estafeta fica por sua conta, “sem ajudas financeiras”.
“A parte boa é que posso gerir o meu tempo, se quero ter folga num dia tenho, fica mais fácil. Sou eu que faço o meu horário”, explicou.
Tiago, de 36 anos, salientou que aquilo que o preocupa são as condições de trabalho e a “falta de amparo” por parte de um patrão “que não assume responsabilidade”.
Também entrou para o meio durante a pandemia e, apesar de considerar que há “muitas vantagens”, também se sente preso depois do investimento que teve de fazer ao comprar uma mota e a mochila.
“É tudo por nossa conta. A mochila custa cerca de 80 euros e somos nós que pagamos. Também comprei a mota para andar de um lado para o outro e agora com a escalada dos preços da gasolina fica mais difícil sair e parar”, explicou.
Daphny, de 32 anos, a única mulher que se encontrava no ponto de espera, referiu que antes da pandemia “o negócio era melhor para os estafetas”. Na altura trabalhava as mesmas 12 horas que hoje, mas levava para casa o dobro do dinheiro: “Eu tirava 80 a 100 euros por dia antes da pandemia, desde as 11 da manhã às 11 da noite. Hoje está muito difícil fazer 50 euros nesse mesmo horário”, disse, acrescentando que há mais estafetas.
Já Wagner não tem a certeza se há menos entregas porque há mais colegas na rua ou se pelo facto de as pessoas terem começado a trabalhar mais fora de casa.
“Com a pandemia havia muito mais entregas porque o pessoal estava mais em casa”, salientou o jovem de 31 anos, que faz entregas há cerca de ano e meio e que irá continuar, vendo vantagem em fazer os seus próprios horários.
Um estudo do consultor económico dinamarquês Copenhagen Economics para a Delivery Platforms Europe, publicado em novembro passado e no qual participaram mais de 16.000 estafetas, revelou que a flexibilidade “para trabalhar quando e onde quiserem” é a principal razão (67%) pela qual os ‘riders’ trabalham com plataformas de entrega.
O estudo concluiu também que a maioria dos estafetas (72%) considera o trabalho através de plataformas uma atividade complementar, com 34% a estuda e outro terço (34%) a ter outro trabalho em tempo integral ou parcial.
A flexibilidade permite que os estafetas escolham o horário e a quantidade de horas que trabalham livremente, resultando numa variação média das horas semanais de 42%.
“A entrada de cada vez mais ‘players’ neste setor é a prova de que este mercado tem ainda muito caminho para crescer e se desenvolver. No futuro, acreditamos que será possível recebermos qualquer coisa em casa, num curto espaço de tempo”, salientou David Silva, da Bolt Food Portugal, sublinhando que “as empresas terão de se adaptar a esta realidade sob risco de perderem a sua competitividade no mercado”.