Artigo de opinião de Gil Nunes.
Diretos ao assunto: o Toulouse, que é 14º classificado da liga francesa, é um adversário fácil. Aliás, num contexto de normalidade, qualquer equipa da parte superior da tabela da liga portuguesa teria todas as possibilidades de seguir em frente neste play-off de acesso à Liga Europa. E, por muito que o Benfica tente deturpar o contexto através de exibições sofríveis, também deverá seguir em frente na competição. E agradecer aos deuses do sorteio não ter calhado outro tipo de adversário. Que poderia ter provocado uma hecatombe à moda de Braga.
Também diretos ao assunto no que à equipa do Benfica diz respeito: coletivamente “razoável menos” (ou mesmo medíocre) dentro de um universo individual que é de tremenda qualidade. Rendimento mínimo garantido e encapsulado num modelo estanque que desagua numa cristalização tática em 4x2x3x1 que, mais do que provocar um jogo sonolento e sensaborão, impede que a equipa voe como deveria voar. Como se comprova na dinâmica ofensiva: é Di Maria a pender da direita para dentro ao expoente da loucura; ou então as desmarcações ou transições rápidas de Rafa a promoverem o desequilíbrio e os abanões no último reduto contrário. Ou então João Neves a ganhar duelos atrás de duelos e a desenrascar linhas de passe que não se consolidam nas zonas adiantadas do terreno porque, na realidade, também tem de ser ele a fechá-las e ainda não possui o dom da ubiquidade. Não pode passar, receber e voltar a passar o próprio passe que faz.
Seja como for, não há muito que possa ser apontado aos jogadores. Nesta temporada, inclusive, até o “benfiquismo puro” serviu para se ganhar ao Sporting num jogo de desfecho altamente injusto para os leões. Mas a tremedeira recente teve início no Minho. Em Guimarães. Debaixo de vasta intempérie e com um relvado grotescamente empapado, Schmidt decidiu retirar o avançado de referência (Arthur Cabral) apostando numa frente móvel (Rafa e Di Maria), repetindo um pouco o modelo que apresentou no embate da Supertaça diante do FC Porto.
Seis meses separam ambas as partidas, mas a conclusão mantém-se inalterável: Schmidt teve mesmo de retificar ao intervalo, isto depois de ter dado 45 minutos de avanço ao adversário. Que o cenário melhorou com Florentino (maior eficiência nas recuperações) e com Arthur Cabral (retirá-lo da equipa quando está em alta também não será muito prudente em termos de leitura de médio e longo-prazo) lá isso melhorou. Mas jogar em meia parte é sempre mais complicado. E uma conclusão mais obtusa: sempre que o desenho tático se altera, o Benfica fica pior. Real Sociedad fora (três centrais) só para dar um exemplo de relance que por pouco não adquiriu contornos de catástrofe.
E os encarnados têm de ser mais plásticos. Mais convincentes e imprevisíveis. É claro que tais atributos se consolidam através de um processo de laboratório que faz com que as dinâmicas resultem quando devidamente aplicadas no contexto do jogo ou dos jogos. O que não se entende é ter matéria-prima substancial – até reforçada no mercado de inverno – e os encarnados estarem quase que excentricamente dependentes de dois elementos dotados de indiscutível qualidade superlativa: Rafa e Di Maria. Que não duram sempre. Também têm limites e o final da época poderá ser determinante para sabermos se as pilhas estão ou não hiper gastas.
No cru, há coisas que não se entendem mesmo. As adaptações. E não na medida em si – porque saber adaptar é uma virtude – mas antes na base do pensamento. Dois caminhos: podemos optar por um lateral esquerdo puro - Álvaro Carreras - mas que ainda não está devidamente consolidado no que ao processo defensivo diz respeito; ou então podemos lançar em jogo um central esquerdino – Morato – que é muito abnegado e cumpridor, mas cujas próprias características morfológicas o impedem de desempenhar corretamente a função. A pergunta para um milhão de euros e a resposta de meia dúzia no meio de um enxame de um milhão. Porque, de forma quase unânime, a opção por Álvaro Carreras, logo de imediato e quando chegou, seria a mais sensata. E Schmidt opta pela resposta “2” ou então pela “1,5”: se nada disto resultar ponho lá o Aursnes e tudo se desenrasca. Porque o rapaz norueguês é mesmo muito bom. Sendo que brota outra questão da terra: se Aursnes atuasse mais vezes na sua posição de origem – meio-campo ou descaindo para o miolo a partir da faixa – porventura o seu valor de mercado e influência já teriam duplicado. Como ele próprio o mereceria.
Até porque há outros problemas que se agudizam. E, num segundo até, Morato faz falta na sua posição de origem. Na zona central da defesa. Onde está Otamendi. Que está em baixa. Só na primeira parte, os médios e avançados do Toulouse ganharam várias vezes os duelos com o central argentino, possibilitando que a equipa francesa adquirisse asas que não estavam nos planos de jogo. É claro que tudo é maquilhável com o esforço permanente (por aí nada a dizer) de Otamendi e com a qualidade indiscutível de um parceiro de setor – António Silva – que disfarça e previne muitas situações de alvoroço. Porque, atualmente, é António quem desempenha o papel de professor e Otamendi o de aluno.
É que o Benfica tem o melhor plantel da liga portuguesa e quase que tem a obrigação de a vencer sem grandes discussões. E, refira-se, até a pode vencer no limite de um processo individual que disfarça lacunas coletivas. O que, a montante, será a pior coisa que pode acontecer aos encarnados: pois um eventual título pode impedir uma renovação da equipa técnica que, a continuar nos mesmos moldes, não promoverá a melhoria da equipa temporada após temporada. O hipotético irónico da questão: se vencer a liga, o Benfica até pode sair prejudicado. A menos que se arranje uma saída airosa, política e conveniente para o técnico alemão. E aí sim: lá em casa tudo bem. Haverá muita estrada para andar.