
Artigo de opinião de Gil Nunes
O sucesso pode ser um lugar muito isolado e, acima de tudo, é utópico alguém se conseguir colocar no papel de Cristiano Ronaldo. Que não pode ir a um jardim nem à praia sem o seu espaço ser invadido por uma imensidão de fãs, sendo que nem o próprio nem os fãs têm culpas no cartório. As coisas são mesmo assim.
A partir daí podemos colocar redes de tolerância mais amplas do que aquelas que seriam colocadas a qualquer um de nós. Pode ser compreensível, por exemplo, que Cristiano Ronaldo chore após falhar uma grande penalidade. Ou seja, se tivesse sido qualquer outro jogador a fazê-lo, poderíamos estar aqui a falar de imaturidade ou falta de tarimba para uma situação do género. Justificáveis e planetários dois pesos e duas medidas.
Depois, há algo que produz um maior impacto nas variáveis: o contexto. Regresse-se a 2022, altura em que Cristiano Ronaldo se juntava à concentração da seleção nacional na sequência de uma impactante entrevista ao jornalista inglês Piers Morgan. Que, diga-se, genuína ou convenientemente o entrevistou. Percebia-se uma intranquilidade reinante fosse num cumprimento mais frio a Bruno Fernandes ou então a um vídeo mal interpretado com João Cancelo. Ou, no seio da própria competição, a audível crítica a Fernando Santos após este o ter substituído no jogo diante da Coreia do Sul.
No fundo, o somatório de pequenos episódios que coroaram duas premissas: em primeiro lugar a tal turbulência advinda de um novo período de banco de suplentes no Manchester United; depois, a invisível mas sensorial constatação de que Cristiano Ronaldo percebera que já não podia voltar a ser o jogador que era. Doloroso.
O que é que o Al Nassr trouxe de novo na vida de Ronaldo? Sim, desafios, recordes, prestígio. Tudo e mais alguma coisa. Mas trouxe algo que se sobrepôs a tudo o resto: a tranquilidade de ir para o jogo sabendo, de antemão, que ia ser titular e a referência da equipa. Ou seja, os novos ventos da Arábia Saudita representaram uma viagem ao passado e aos tempos de glória do grande CR7 rei e senhor de Madrid e eixo dominante de desequilíbrio da seleção portuguesa.
Pode ser muito giro (e até com ponta de verdade) dizer-se que o campeonato saudita é tão competitivo como as principais ligas europeias, mas também se sabe que não é bem assim. Esse hiato, esse pequeno ou grande hiato, faz-se sentir na altura das grandes competições. Onde Cristiano Ronaldo já não desembrulha jogadas vindas do nada e se consegue sobrepor a qualquer tática vigente. O super CR7.
Hoje, o desafio tem um duplo caminho. De Piers Morgan a Ricardinho. Pelo caminho inglês, e no meio de uma entrevista repleta de elogios construídos com o frio calculista da régua e do esquadro: afinal está tudo enganado e Ronaldo continua a ser um jogador de capacidades inimagináveis, capaz de fintar o espartilho da idade e apresentar um menu de soluções que o tornam determinante em toda e qualquer circunstância. Ou então optar pelo caminho português. O de Ricardinho no mundial de futsal: posso já não ser o melhor do mundo mas, se outrora consegui desequilibrar, agora também sou capaz de equilibrar. Jogue os minutos que jogar serei sempre útil e sei que a minha experiência, acima de tudo, irá representar o acento tónico da necessidade da equipa neste preciso momento. Que é uma situação prioritária em relação a tudo o resto.
Pode também fazer-se uma análise clara da situação. Se CR7 é convocável? Sem dúvida. Se continua a ser letal nas zonas de finalização? Claro. Se pode ser titular? Sim, mas também pode ser suplente de acordo com o seu rendimento e, também, de acordo com aquilo de que se dispõe em termos de alternativas. E a última questão: se a dupla Leão/Ronaldo é um aporte de desequilíbrio (do bom) e uma vantagem considerável para a equipa portuguesa? Por aí talvez não. São dois jogadores que, muito embora possuam atributos consideráveis, perdem em termos de pressão alta, o que faz com a equipa tenha de se adaptar para colmatar essa lacuna ou, sendo mais pessimista, não consiga mesmo colmatá-la, instalando naquele setor uma ferida aberta que é desnecessária tendo em conta os recursos existentes. Tendo em conta Gonçalo Ramos.
Se a nota dominante é evitar a utilização pelo estatuto em vez do rendimento em si, Cristiano Ronaldo tem a oportunidade soberba de dar uma pedrada nesse proeminente iceberg invisível. Basta falar: dentro ou fora de campo o apoio será permanente, em prol de uma equipa que, devidamente calibrada, tem argumentos para danificar uma França poderosa, mas com algumas brechas (sobretudo no meio-campo defensivo) que podem ser exploradas por um Portugal a cem por cento.
E uma conclusão inevitável: se as coisas correrem bem e Martinez utilizar todas as sete camisas de que dispõe até à final, um jogador terá sempre mais holofotes em cima que todos os outros: Cristiano Ronaldo. Que, às custas disso, independentemente do que fizer será sempre visto e reconhecido como um dos obreiros da glória. É que não é fácil ser-se Ronaldo. Pressão constante. Ventania. Mas, nas contas finais, o segredo da expansão portuguesa também não esteve na criação do vento, que já tinha sido inventado na altura dos Descobrimentos. Esteve, isso sim, na astúcia de o colocar sempre a seu favor. Haja CR7 Ricardinho.