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A composição química da lágrima de Portugal

Artigo de opinião de Gil Nunes.

A composição química da lágrima de Portugal
Depositphotos

Por aí Roberto Martinez tem toda a razão do mundo: há muito mais vida para além de 2024. E, mais do que ter razão, tem um pensamento de desenvolvimento sustentável que se enquadra numa competitiva seleção de futuro. Da base ao topo da pirâmide, com os escalões de formação e as segundas linhas a serem eixos decisivos de uma progressão que se pretende plena e sempre robusta.

Se a França provocou lágrimas de Portugal, há agora que analisá-las em conformidade. Ao microscópio. Porque também houve vida antes do infortunado dia 05 de julho. E a questão reside mais no desempenho da equipa ao longo de toda a competição e menos num França – Portugal que seria sempre inevitável pois, mal ou bem, Portugal conquistou o 1º lugar do grupo – o tal que seria sempre sua obrigação.

De lupa na mão: o desenho de três centrais revelou-se carente de melhorias e bateu de frente com um bloco muito baixo (Chéquia), e com uma seleção da Geórgia que mostrou qualidade na altura da transição ofensiva. Mas, por aí, outro argumento que escuda o treinador: mesmo num contexto de competição, e tendo em linha de conta que qualquer seleção dispõe de pouco tempo para treinar, há sempre espaço para a assunção do risco e para a continuidade de uma ideia de jogo que se pretende que evolua de a para b ou, como Martinez referiu no dia da sua apresentação, para a tal flexibilidade tática que poderá tornar a equipa portuguesa indomável. Contra a Chéquia, contra a Geórgia, marchar, marchar. E continuar a marchar.

Se Portugal não descambou mas também não foi a melhor equipa da fase de grupos, seguiu-se um novo desafio perante a Eslovénia que fez devidamente soar o alarme da preocupação. Porquê? Cristalização tática assente numa catadupa de cruzamentos insípidos, falta de profundidade e ainda um conjunto de substituições mais por estatuto e menos pela avaliação do desempenho em si. Ou, se calhar, pode não ter sido bem assim.

Quem nada faz nada erra ou, puxando mais a corda, todo o perdão a quem corrige o erro. É certo que o relvado de Leipzig (jogo diante da Eslovénia) estava deplorável para uma fase final, mas também é atirar areia para os olhos dizer-se que Vitinha saiu porque o piso não beneficiava o jogo interior como seria suposto. Sim, porque Vitinha é craque, aproveitou o euro para conquistar um novo e merecido estatuto, e não há buracada na relva que trave semelhante qualidade e, acima de tudo, aquele que se revelou o grande cérebro da equipa portuguesa. Isto já para não falar da substituição de Rafael Leão: se o cão da criatividade não está disponível, nada como caçar com o gato da força e do arranque rápido. Um belo par de repelões é sempre melhor do que um belo saco cheio de nada. Como foi o prolongamento frente à Eslovénia, onde se exponenciaram fragilidades incompreensíveis para se enfrentar e perfurar os ditos blocos recuados.

Frente à França, Martinez não cometeu o mesmo erro: percebeu a necessidade de se manter Vitinha em campo, fosse para segurar Camavinga ou, sobretudo, para imprimir o ritmo de jogo que a equipa necessitava. Acelerar ou desacelerar no timing certo. E não se coibiu de retirar de campo as vacas sagradas. Ou algumas vacas sagradas. O melhor Portugal surgiu na sequência da pequena sociedade construída entre Vitinha e Bernardo Silva, que praticamente congelou o jogo em posse dos gauleses e potenciou a largura necessária num flanco direito devidamente reformulado -Semedo e Conceição entraram muito bem – e num Nuno Mendes que, mais uma vez, se cotou como um dos elementos mais fiáveis da equipa portuguesa.

E mesmo a saída de Palhinha foi inteligente e à prova de risco. De facto, num jogo equilibrado, mas suscetível ao caos a qualquer momento, foi absolutamente justificável tirar-se do campo o elemento tampão que estava amarelado em prol de um criterioso Rúben Neves que também não desiludiu durante o tempo em que esteve em campo.

E é inevitável falar-se da questão Cristiano Ronaldo. E abordar-se o argumento de que CR7 pode desequilibrar a qualquer momento. Que se encontra cada vez mais seco e opaco. Porque a análise deve ser feita num outro prisma: qualquer desequilíbrio que CR7 possa provocar no jogo, atualmente, não compensa o desempenho insuficiente que apresenta em todos os restantes domínios do jogo coletivo. Frente à França pediu-se por diversas vezes um maior rendimento na frente de ataque e a dúvida, apesar de especulativa e perigosa, também não deixa de ser pertinente: se fosse outro que não CR7, será que não teria sido naturalmente substituído? Sim quase unânime.

Portugal sai do europeu com uma série de pequenos hiatos – táticos e de gestão de individualidades – que, não tendo sido catastróficos, também bloquearam o natural processo rumo ao título. Sobressaem pontos positivos e o mais saliente na própria coesão do grupo: na altura do erro todos remaram para o mesmo lado. Como há muito não se via: sem divisões, sem episódios, sem grandes especulações. Respirou-se coletivo no balneário lusitano. Que chora lágrimas dolorosas mas que, ainda assim, são justas. Portugal também não merecia ganhar o europeu. A verdade dói e escalpeliza a composição química da lágrima. Da lágrima de Portugal.

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