
Artigo opinião Gil Nunes.
Grandes penalidades todos falham e, salvo alguma atitude displicente na cobrança do castigo máximo, ninguém pode ser acusado seja do que for. No caso de João Félix seria tremendamente injusto colar o seu nome à eliminação de Portugal do europeu. Até porque há uma verdade que prevalece: dificilmente Portugal ganharia o euro. Por muito que a eliminação diante da França tenha sido coberta de injustiça, há seleções com melhor desempenho. Com a vizinha Espanha à cabeça.
Aliás, retirando a grande penalidade falhada do menu da análise e focando no jogo em particular, é bem mais discutível a atitude em “off” com que João Félix concluiu o cruzamento largo de Francisco Conceição. Que teria dado golo caso tivesse sido o Félix de outros tempos a finalizar. E, ainda, há a verdade proveniente do tempo de utilização, cujo melhor exemplo até pode colocado noutros jogadores: racional e friamente Gonçalo Ramos realizou um europeu sofrível depois de ter sido utilizado por escassos minutos; o mesmo raciocínio se aplica a João Félix. Na íntegra.
Depois, há outra verdade que deve ser explorada, até porque a avenida que separa a estrela do esgoto é longa e sinuosa. Demora mais de dois anos a ser calcorreada. Ora, se João Félix foi um dos jogadores com melhor desempenho no mundial de 2022, também não será agora que passou a pateta da companhia, isto mesmo reconhecendo que o seu desempenho no europeu ficou bem aquém daquilo que estava previsto.
Seja feita a triagem. Foco na raiz. Afinal, o que vale João Félix? Muito. Mesmo muito. Diego Simeone, técnico do Atlético de Madrid, tem um desabado ordenado e racional. “Vocês não fazem ideia daquilo que ele joga”. E é verdade. Capacidade técnica apurada e centrada no drible curto mas também com astúcia para jogar nas três zonas do ataque; aceleração brusca e conquista de metros preciosos; e discernimento para jogar com ambos os pés. De uma forma só provavelmente comparável a Cristiano Ronaldo.
Bruno Lage não estava louco quando o cimentou, de forma assumida e irreversível, no onze-base do Benfica que se sagrou campeão em 2019/2020. Até porque beneficiou de um atributo em particular: uma maturada capacidade de finalização, invulgar para um jovem de 18 anos, e que catapultou o Benfica para uma reviravolta memorável de sete pontos. Foram vinte golos e lances de levantar o estádio, bem como a conquista de um rótulo de principal responsável por um título histórico.
Hoje, quatro anos depois, é necessário voltar a tocar a campainha da frieza. Podem ter sido 120 milhões de euros e um desempenho que, no seu geral, não é compaginável com o balúrdio que custou. Por aí tudo bem. Tudo lógico. Mas há que analisar a outra face da moeda: aos 24 anos João Félix ainda é um jogador bastante jovem e que tem tudo para recuperar esta pequena viela perdida. Quer ao nível de clube quer ao nível da seleção onde, pelo que dá a entender, terá sempre lugar cativo.
Quase que se pode dizer que a carreira de João Félix foi, até à data e contando com as passagens por Chelsea e Barcelona, uma espécie de combate de esgrima entre a realidade e a fantasia (leia-se fantasma). No sentido real e tácito, se muitos argumentam que Félix é uma grande desilusão ou mesmo um flop é porque, mesmo que de forma inconsciente, o tomaram como um talento ou, pelo menos, como um jovem de grande qualidade.
O problema reside na segunda parte da moeda: do fantasma ou da fantasia. Se houve algo que correu bastante bem em Portugal foi a tranquila passagem de testemunho entre Luís Figo e Cristiano Ronaldo. De uma “big thing” para outra “BIG THING”. Acontece que o facto de Portugal ter tido, durante quase trinta anos, o melhor jogador do mundo acarreta também um problema sebastiânico: todos esperam que alguém surja, no meio do nevoeiro, com real capacidade para substituir CR7 e definir em Portugal a continuação de uma espécie de legado que, na verdade, não tem de existir. Culturalmente não tem de existir. Logicamente muito menos.
Um problema de convivência e de análise deturpada do contexto, numa narrativa em que ninguém é culpado. Mas que se retire o escalpe: o mais normal é Portugal não ter o melhor jogador do mundo e, como tal, também não se esperar que a lenda seja substituída por outra lenda. Esse é o Portugal correto. Um Portugal que respira futebol.
No fundo, o facto de João Félix ter sido aquele que mais perto tocou o céu CR7 transportou-o, também, para um inimaginável trapézio sem grande rede de segurança. Se exigimos o impossível ou andamos lá perto, qualquer muito bom passa por medíocre. Ou, se assim o quisermos, trata-se apenas de uma questão de se ser como Saramago em relação à Bíblia. Limito-me a ler o que lá está. Ou ver o que lá está: um jovem de 24 anos com um potencial tremendo e uma longa autoestrada para percorrer. Apenas Félix. Nunca o novo nem o antigo CR7. Apenas João.