Artigo opinião Gil Nunes.
Diz Rúben Amorim que quando Inácio está bem é um jogador fora de série. E o maior elogio que se pode fazer ao central leonino é exatamente olhar no sentido contrário: quando está mal, ou menos bem, também é um jogador bastante bom.
Se, nos últimos anos, as dinâmicas de jogo evoluíram de tal forma que é perfeitamente normal ver os extremos a jogar por dentro e a não haver os pontas-de-lança produzidos na fábrica Jardel, a evolução também se fez sentir no setor defensivo: hoje, guarda-redes de equipa grande tem mesmo de jogar como deve ser com os pés. E os centrais devem iniciar o processo de construção, como se de médios se tratassem.
Por falar em centrais, houve também uma característica cujo valor de mercado autenticamente disparou: o pé esquerdo. Num universo em que as saídas a três são cada vez mais frequentes (e laterais expostos quase como se fossem alas), tudo só faz sentido quando pelo menos um dos centrais é esquerdino ou, mais raro, muito hábil a jogar com esse pé quando ele não é dominante.
No caso do Sporting, o pé esquerdo é de tal forma valorizado que muitos foram os jogos em que os leões atuaram com seis ou sete jogadores canhotos. E em posições excêntricas, sendo o caso mais saliente o de Geny Catamo pelo lado direito da defesa. Daquelas explicações em que o parvo se transforma em reflexão, e a reflexão se torna inteligente em todo o seu alcance: sim, porque todas as equipas treinam para contrariar um lateral destro e, por conseguinte, todas as equipas se sentem impreparadas para combater um jogador esquerdino a fluir pelo lado direito. A inversão da ordem natural das coisas transforma-se em golpada precisa de treinador astuto e inteligente, que sabe pensar diferente e, com isso, ganhar a natural embalagem para os títulos.
Do lote de esquerdinos do Sporting, há um jogador que possui atributos de tal forma calibrados que a cobiça do Liverpool não espanta. Gonçalo Inácio é um produto diferenciado dentro do fino lote dos produtos diferenciados. Desde logo porque pode atuar em qualquer zona da linha central defensiva, o que proporciona uma overdose de nuances muito difíceis de contrariar ou de prever. Depois, para lá do alto sucesso em termos de passe curto em construção, há um fator que o torna ainda mais requintado: a suposta conquista milimétrica de terreno, que faz com que o passe saia exatamente naquele preciso momento em que o adversário se desposicionou para fechar a linha. No final da narrativa, a conclusão é simples: Gonçalo Inácio é mesmo um médio só que ninguém o avisou.
E também pode ser um lateral. É lógico que as rotinas são completamente diferentes e o raciocínio não é assim tão simplista e motiva treino minucioso e prolongado. Mas quem, como central do lado esquerdo, tem a competência para neutralizar uma ampla zona do terreno, também o consegue fazer numa zona mais restrita ou diferente. É lógico que, em condições normais, a deslocação será apenas por motivos de emergência, não vá tornar-se num novo Aursnes muito útil para a equipa mas manifestamente injusto e improdutivo em termos de desenvolvimento individual.
Há dois fatores que pesam a favor de Gonçalo Inácio: em primeiro lugar o facto de ser um jogador jovem – 22 anos – e que é figura de proa do Sporting desde há quatro temporadas. Tarimba que vence e elimina a verdura. Depois, há também o contexto de seleção: percebe-se a vontade de Martinez em capitalizar a equipa nacional num esquema de três centrais, num desenho que, na Bélgica, resultou em 28 jogos de invencibilidade. Se as comparações não podem ser assim tão lineares e, verdade seja dita, por muito material que Martinez tenha ao seu dispor não tem propriamente um esqueleto de linha defensiva que possa ser transplantado para a seleção, é também evidente que o nome de Gonçalo Inácio é incontornável na mudança e consolidação de paradigma que está a ser implementado.
É um facto, também, que o esquema de três centrais pressupõe rotinas que, à posteriori, são complicadas de desmontar quando se pretende voltar ao esquema de dois. E também é verdade que nem todos os centrais concebidos para jogar a três têm o mesmo desempenho quando têm de se adaptar. Por aí sim pode residir o “calcanhar de Aquiles” de Gonçalo Inácio. Ou a constatação de que os dois golos sofridos diante da Finlândia merecem a mesma reflexão do que a entrada cirúrgica que fez com que Portugal vencesse a Islândia na fase de qualificação. Seja como for, o vasto ramalhete de Gonçalo Inácio transforma-o num ativo apetecível. E num imenso falatório durante o período de transferências. Inácio não caem das árvores todos os dias.