
Artigo de opinião de Gil Nunes
E até que se comece pelos dragões. A confirmar-se, a transferência de João Neves para o Paris Saint-Germain irá bater de frente com um ex-dragão, Vitinha, que ganhou um estatuto extra após um europeu onde se cotou como o elemento mais luzidio da equipa portuguesa. Seja como for, essa é a menor das preocupações. João Neves tem qualidade e maturidade para jogar em qualquer palco. E ambos podem atuar ao mesmo tempo: para os excecionalmente bons há sempre lugar.
É certo que renovou na pretérita temporada com o Benfica mas, valha a verdade, a cobiça não surpreende e, a confirmar-se, as águias também não poderão muito fazer para segurar uma das suas principais joias. Fora da ilha, as palavras e a razão de Amorim: se Portugal já faz quase o impossível ao produzir e lapidar, de forma muito regular, diamantes do melhor que há, o próximo desafio será o de conseguir criar um contexto suficientemente atrativo para que os craques se mantenham por cá mais alguns anos. É certo que o discurso do sol e da comida portuguesa tem limites definidos em milhões, mas a versão romântica da coisa é uma poderosa arma em termos de qualidade de vida e, no caso, de crescimento sustentável dos craques em porto seguro. Em Portugal seguro.
No caso de João Neves, há algo que é incontrariável: o PSG não é propriamente um clube do meio da tabela da liga inglesa, pelo que os argumentos se exponenciam e esmagam qualquer resíduo de romantismo. Compreensível. Depois, há a mais pertinente das questões: será que João Neves tem a estaleca necessária para chegar ao PSG e impor-se de imediato? Sem solavancos ou hiatos que coloquem em causa a sua performance, sendo que no caso ainda está em processo de desenvolvimento?
Por aí sim. E bem mais seguro do que Renato Sanches quando, em 2016, rumou ao Bayern de Munique. E, na situação em específico, até nem tanto por uma questão de somatório de desempenhos mas antes pela valorização da atitude emocional: melhor em campo diante do FC Porto na primeira volta; determinante em 2022/2023 quando, num último fôlego, guiou as águias rumo a um título in extremis. Porque para entrar de caras no PSG não basta ter um curriculum muito regular e arranjadinho. Não chega. É preciso olhar de esguelha e complementar a natureza do detalhe não como minudência superficial mas antes como pilar fundamental de afirmação futura. É a atitude em todo o seu quadro de benefício: tanto se a tem em Lisboa como em Paris. Ou noutro sítio qualquer.
Nestas contas, como poderá ficar o Benfica? Em primeiro lugar sempre um perigo decorrente do próprio mindset de substituição peça por peça implementado pelo treinador. É legítimo e seguro pensar-se em Renato Sanches como alternativa a um meio-campo ferido após a saída de João Neves. Mas é altamente perigoso olhar-se para Renato Sanches (mais as suas transições ofensivas violentas) e colocá-lo na mesma zona de intervenção de João Neves. Corre-se o risco, mais uma vez, de se pensar que Kokcu substitui Enzo com a mesma naturalidade de quem substitui um pneu. No caso do Benfica, o perigo ronda ou pode rondar: é porque não está em causa a qualidade de Beste ou de Pavlidis mas, acima de tudo, a constatação de que foram adquiridos dentro de uma aura de bola de sabão que ilude e faz pensar que as suas entradas em cena vão resolver todos os problemas e mais alguns. Não é bem assim. Nunca será bem assim. Então num clube grande é que nunca pode ser assim.
No entanto, a questão João Neves define na perfeição a linha condutora de Roger Schmidt: sem qualquer tipo de receio, ou do tal solavanco, foi o técnico alemão quem não teve dúvidas em apostar num jovem jogador de 18 anos e cimentá-lo de forma efetiva no onze dos encarnados. Por outro lado, também é por causa de Schmidt que o Benfica não tem a plasticidade tática suficiente para, aos dias de hoje, se encarar a saída de João Neves como uma inevitabilidade ou algo de altamente previsível. A confirmar-se, vem aí cratera. E das grandes.
E, colocando de parte a questão da atitude e da resiliência mental, o que é que efetivamente João Neves pode render? Muito. Uma matrioska de soluções dentro de um só jogador: de ambos os pontos de vista, ofensivo e defensivo, apresenta inteligência nas movimentações e um duplo atributo de chegada à área e de auxílio à linha defensiva na primeira fase de construção. Intenso nas marcações, tem também instalado o fator x – de superação das suas próprias capacidades para um outro patamar, assente na eficácia ao nível dos duelos, situação que não é de todo natural tendo em conta o seu arcaboiço físico.
Sim, chega-se à parte de La Palice: há vida para lá de João Neves. O Benfica subsistirá e, muito embora os negócios se devam fazer com a astúcia de quem sabe vender, também é certo que quanto mais cedo o problema estiver resolvido, tanto melhor. Com participação da Liga dos Campeões e no Mundial de Clubes, vir para o Benfica é sempre uma oportunidade única e até dá para uns acordes mais sonoros no violino do romantismo português. Excelente sol, excelente comida e boa praia. Ideal para famílias. Ideal para craques. Ou potenciais futuros craques.