Artigo de opinião de Gil Nunes.
Quando, na jornada inicial da liga 2022/2023 diante do Famalicão, o jovem Tiago Gouveia, à época extremo do Estoril-Praia, afina por uma difícil receção orientada após passe longo que o colocou na cara do golo, logo ali se percebeu na sabedoria dos pormenores que se estava perante um jogador diferenciado. Com pinta.
É lógico que tal não chega para se emitir o certificado de craque nem tão pouco o passaporte de regresso ao clube de origem – o Benfica. E há uma premissa determinante: os pormenores de extrema qualidade de pouco valem quando não estão revestidos de membrana de regularidade, até porque um clube como o Benfica não pode viver de jogadores que provocam epifenómenos e depois caem na penumbra do desempenho sofrível e inconstante.
As características de Tiago Gouveia – hábil no um contra um, velocidade e apetência para jogar no corredor – podem e devem ser exploradas a partir da posição de lateral direito. Se, na temporada passada, Schmidt deu um robusto “não” a essa possibilidade, este ano as coisas não têm sido bem assim. Durante a pré-temporada, Tiago Gouveia foi, por diversas vezes, experimentado nesse novo papel e com primeiros resultados assinaláveis. Desde logo respondendo a um ditame essencial: é mais fácil ensinar um jogador a defender do que o contrário. Sim, é natural que nem todos os jogadores tenham a plasticidade e o poder de encaixe para entrarem nesse processo de refinação e, por outro lado, Pepê e Geny Catamo não se fizeram num só dia. Nesse prisma, entra em campo a capacidade da equipa técnica em persuadir e, ao mesmo tempo, lapidar para que o resultado a longo-prazo seja efetivo e duradouro.
Certo é que, diante do Casa Pia e atuando como extremo, Tiago Gouveia foi determinante para a obtenção de três pontos que, a montante, proporcionaram a Schmidt um importante balão de oxigénio. Por aí uma reflexão: não é saudável um clube grande viver debaixo deste teto, dessa nuvem negra permanente, sabendo-se que a mesma (contestação e dúvida em torno do técnico) já tem quase um ano. A melhor sensação do mundo é o alívio mas em doses e cenários equilibrados.
Sobre o jogo em si: o Benfica ganhou, sim, e ganhou bem e sem qualquer contestação. A questão é que deu 65 minutos de tolerância ao adversário. Diante de um Casa Pia que é manifestamente inferior, não se percebe por que razão o Benfica continua a entrar em campo com dois médios de contenção – Florentino e Barreiro – ainda para mais quando ambos, sem culpa e por razões de ADN, não aportam a criatividade necessária para ligar os setores e tornar tudo mais fluido. Menos pastoso e previsível. Ora, se a falta de criatividade foi, mais uma vez, um dos problemas sentidos (e sem necessidade alguma), houve outra questão que entrou no almanaque do incómodo: a falta de largura da equipa no processo ofensivo. É certo que a lesão de Beste complicou as contas ao nível da exploração do corredor esquerdo, mas não é muito compreensível que Schmidt, em jogos desta natureza, continue a utilizar João Mário e Aursnes quando ambos não são jogadores típicos de corredor. Pode argumentar-se que João Mário acrescenta todo o critério do mundo em termos de circulação de bola e que Aursnes é um excelente jogador e os excelentes jogadores devem estar sempre em campo. Mas o Benfica não pode viver nem de argumentos nem de prémios a jogadores de tremenda resiliência e cuja qualidade individual é inquestionável. Deve, isso sim, viver de soluções. Adaptáveis a qualquer cenário.
O minuto 65 deu a positiva cambalhota que o jogo necessitava. Com Kokcu em campo, a equipa ficou mais criativa e com outro requinte em termos de soluções de passe e criação de linhas. No centro do terreno, era urgente o recurso a um avançado – Marcos Leonardo – para criar um caos numa linha de três centrais do Casa Pia que, de forma mais ou menos criteriosa, lá ia conseguindo desposicionar Pavlidis. E, do lado esquerdo, a peça principal. A peça que faltava: desequilíbrio no um contra um a partir desse flanco, com todo o bloco visitante a ter de se reestabelecer para estancar o problema agora sentido no seu lado direito e, por conseguinte, que indiretamente criava um alvoroço na zona central. E o Casa Pia tornou-se presa fácil.
Das duas, uma: ou Schmidt está perfeitamente convencido de que a sustentação deste onze-base vai representar a plataforma necessária para o Benfica se agigantar em jogos de maior exigência e, como tal, há que correr riscos frente a adversários mais débeis; ou então está sofregamente agarrado a um desenho tático cristalizado que não lhe vai trazer outro cenário que não a conquista de balões de oxigénio jogo após jogo. O tal cenário que, para além de aportar ansiedade, não produz a trajetória de desenvolvimento que deveria ser característica de um técnico que está a começar a sua terceira temporada no mesmo clube.
Porque o Casa Pia impõe, nas entrelinhas, uma reflexão forte: foi evidente que os encarnados andaram, durante cerca de 65 minutos, a adiar a resolução de uma partida aparentemente fácil. Mas Schmidt foi tão rígido em relação a um pensamento de que as mudanças do modelo inicial se fazem apenas em caso de emergência/aflição, que tudo se tornou mais complicado. E há que ser equilibrado: o Benfica tem poder de fogo mais do que suficiente para não estar dependente deste ou daquele adversário, mas há que ter limites e bom-senso. Bastava, na semana que antecéu o jogo, pegar no dossiê Casa Pia para o aniquilar com um onze diferente. E não se perdia nem desvirtuava nada. Pelo contrário, até se ganhava. E muito.