Artigo de opinião de Gil Nunes.
Ponto número um: com muitos jogadores acima da média do ponto de vista técnico, não será muito fácil ganhar ao Lille; ponto número dois: mesmo assim, os franceses só criaram uma verdadeira situação de golo ao cair do pano e na sequência de um erro individual de Maxi Araújo; ponto número três: o repertório de pequenas nuances do Sporting é de tal forma complexo que, para se entender com rigor o que os leões fazem em campo, quase que é necessário realizar uma tese de doutoramento.
Porque perceber o FC Porto – com quem se joga todos os anos – é uma coisa. Perceber o Lille – com quem se joga de vez em quando – é outra. A questão é que, com tanto trabalho em cima, quase que nem se nota. Por exemplo, com Morita a subir para zonas altas e, fruto da sua ação, a obrigar a linha média a derivar para a banda direita com toda a equipa a ajustar-se para contrariar uma situação expectável e definida por antecipação. No fundo, o Lille jogou por onde o Sporting quis. E Morita pode também recuar para compor uma linha defensiva de quatro onde tudo é flexível: onde Debast pode ser o lateral direito e Gonçalo Inácio (depois Matheus Reis) o lateral esquerdo. Ou seja, se todas as premissas estão garantidas e o adversário só joga por onde nós queremos, até que é possível utilizar, por vezes, só um central (Diomande) – a nascente do rio está de tal forma condicionada que o que se passa na foz acaba por representar um pequeno fio de água. Sem perigo de inundação.
Mas o Sporting também pode defender com cinco homens, fazendo recuar Catamo e Quenda. E, sob pressão, a circulação pode ser feita em zonas baixas com recuo estratégico de Trincão a possibilitar o canal de descompressão. É certo que Morita saiu ao intervalo, principalmente, pelo cartão amarelo mas havia um pequeno problema que estava a condicionar o carburador – a falta de definição no último terço. Não que fosse catastrófico, não que fosse um problema que colocasse em xeque toda a estrutura do edifício. Mas sim, uma areia na engrenagem. Com Daniel Bragança em campo, o Sporting ganhou uma maior imprevisibilidade na construção – assim também tinha acontecido diante do Arouca – e, acima de tudo, retirou o peso de cima dos ombros de um tridente ofensivo que se entende de olhos fechados.
No caso do Sporting, o problema até se transforma em virtude a qualquer momento. Por aí encontra-se o ouro da mina. Veja-se o que aconteceu diante do FC Porto: dragões em alta no seu melhor período e a pressionarem pelo flanco esquerdo. Perda de bola e rápida conquista da profundidade através de Gyokeres. Que deu golo. A conclusão é, ao mesmo tempo, repleta de cinismo e de encanto: o Sporting tem, mesmo quando mormente adormecido, armas para dar a volta ao jogo num ápice e, falando em sueco, de forma letal e determinante.
Por isso é que foi contratado Gyokeres – e agora Harder - e nenhum outro. A sua capacidade de exploração de profundidade, e de criação de movimentos de rutura nos três corredores, faz o Sporting ressuscitar na partida a qualquer momento. E há outro antídoto: mesmo nos momentos onde a definição a partir da construção do miolo possa carecer – tal como aconteceu diante do Lille – o tridente Gyokeres – Pedro Gonçalves – Trincão encontra soluções na frincha da janela. E até parece que jogam juntos desde pequeninos. Ou desde pequeninos há cerca de um ano a esta parte. Três virtudes: assimilação rápida do pensamento de Rúben Amorim, algo que so é possível quando se realmente acredita no técnico: preocupação em compreender o outro, algo que so é possível quando existe espírito de grupo; e, por último, aquela particular perceção de que ficar no Sporting pode ser bem mais vantajoso do que sair – dai o discurso de Gyokeres ser tão polidamente sensato. Com palavras previa e meticulosamente induzidas a dedo.
O Sporting foi leão-do-atlas frente ao Lille mas até pode ser leão-núbio diante do AVS. E pintar a selva de diferentes cores no filme do jogo: ora defendendo com três, ora com quatro ou cinco. Ora realizando variações rápidas de flanco por Quenda ora explorando a capacidade de construção e de leitura de espaço de Debast. A equipa mais difícil de bater não é aquele que tem os melhores jogadores: é, isso sim, a mais complicada de desmontar tendo em conta a sua imprevisibilidade e as suas nunces que fazem com que cada detalhe seja uma parte determinante e, por conseguinte. “não-detalhe” do processo. E o detalhe desaparece.
Se a perfeição não existe e o inexpugnável coletivo também não, como contrariar o Sporting? Erros individuais. Erros decorrentes da condição humana. Ou a forma como o Arouca entrou no jogo, com David Simão a servir Jason nas costas de Matheus Reis. No fundo, tentar bloquear o coletivo e ferir o leão através da criação de condições para que o erro individual possa aparecer mais vezes. Porque, valha a verdade, nada é feito ao acaso: nem o balão que Matheus Reis fez e que originou o golo inaugural frente ao Lille. A força do detalhe e o poder da minúcia são de tal ordem que tudo estava preparado para que tal “pseudo patacoada” acontecesse. Eis o Sporting. Uma das melhores equipas da Europa da atualidade.