
Artigo de opinião de Gil Nunes.
São pormenores que separam os grandes avançados de todos os outros. Na realidade, aquele segundo toque de Samu no dois a zero em Guimarães – uma espécie de toque de pantufa – é sintomático de quem já tem a finalização na cabeça e que nada, mesmo nada, conseguirá travar uma execução triunfante. Sim, até poderia ter sido golo de uma outra forma. Mas a forma como Samu finalizou só está ao alcance de um avançado de predicados superlativos. A pitada de canela. Ou aquele banho de açafrão que dá ao arroz um sabor especial.
No primeiro jogo de Gyokeres com a camisola do Sporting, frente ao Vizela, aconteceu algo de semelhante. Cruzamento do lado esquerdo e uma carambola que atravessou vários jogadores minhotos antes de regressar à área de intervenção do avançado sueco. O que fez Gyokeres para resolver o assunto? Um calcanhar pouco ortodoxo com o pé direito para providenciar a rápida finalização com o pé contrário. Uma situação que, nas entrelinhas, deixou água na boca e a fina certeza de que estávamos perante um jogador dotado de uma qualidade excecional. Como se veio a comprovar.
Traçar um paralelo entre Samu e Gyokeres é afinar pelo inequívoco diapasão do craque mas, ao mesmo tempo, é também aportar às respetivas equipas o significativo poder da exploração da profundidade. Algo que, por exemplo, faltou ao FC Porto em Alvalade. Aliás, quando o próprio Vítor Bruno sublinha a tónica de Samu adquirir todas as rotinas com precisão, sabe que o melhor ainda está para vir. Jogar mais em apoio com os médios, ou definir a estratégia de pressão alta, advém do tempo e do entendimento quase irracional e espontâneo que se tem com os colegas. E que se adquire com tempo, sendo que tempo representa uma natural mas controlada exposição ao erro e, por conseguinte, também um processo em que o desequilíbrio que Samu proporciona, mesmo em terreno de aprendizagem, é sempre benéfico para os dragões.
E Vítor Bruno tem razão quando opta por proteger Namaso: porque, na realidade, não estava a jogar mal. Sobretudo em posse, apoio aos médios e recuos estratégicos para arrastar marcações e desmembrar linhas muito baixas, o papel do inglês estava a ser fundamental num FC Porto que cria muito mais e se expõe com muito mais pertinência por zonas centrais. Algo que faltou na temporada passada, sobretudo diante de adversários menos fortes e que provocaram uma enxurrada de vitórias in-extremis que não são compagináveis com um clube grande que, no seu trilho natural, deve vencer de forma confortável e inquestionável a maior parte dos seus jogos.
Controlar a primeira parte para bloquear os focos de alimentação do Vitória – sobretudo no meio-campo – e, acima de tudo, colocar Rui Borges a pensar de forma diferente para se oferecer ao risco. Fosse pela colocação inicial de Eustáquio ou por uma maior prudência das ações de Pepê ou Nico González, o diferencial portista foi assente em duas fatias: impedir o crescimento do Vitória; e fazer com que a equipa da casa tivesse de mudar ou, por outras palavras, de se expor ligeiramente para abrir pequenas fissuras à retaguarda.
E o maior elogio que se pode fazer ao Vitória pode, ao mesmo tempo, ser uma antítese de uma seca desvantagem de três golos. Com a imagem do Floriana de Malta a pontificar: o Vitória bem que se podia ter sentado à sombra da bananeira à espera que a vantagem batesse à porta – como iria bater dada a sua inequívoca superioridade – mas a opção foi virtuosa desde o primeiro minuto: ir à procura do resultado. Não ficar exposto a um imponderável que, na sua exponenciação, poderia resultar em improvável ou catástrofe. Ora, como não há atitudes nem estratégias perfeitas, o próprio FC Porto aproveitou esse ADN que, verdade seja dita, vai trazer mais triunfos ao Vitória do que derrotas. Ou seja, por muito que custe, é bem melhor perder desta maneira e manter a viatura na mesma autoestrada da rejeição pura da inércia do que trancar a casa e definir uma estratégia em que se poderia perder ou não mediante a qualidade ofensiva do FC Porto em cenário de penetração e desmembramento de blocos baixos.
E a principal conclusão é mesmo contabilística. De matemática pura. O Vitória sofreu cinco golos na liga, sendo que três deles foram apontados em 45 minutos pelos dragões. Uma percentagem de sessenta por cento. E por onde entrou muita da água: pelos corredores laterais. Do lado direito, é evidente que Martim Fernandes congrega solidez defensiva e um entendimento tático até precoce para a idade que tem. Mas nada como um lateral que foi um extremo, e que continua a sê-lo mesmo ser saber. João Mário. No lance do primeiro golo, numa instância inicial, até teria sido bem mais natural e ortodoxo a bola ter seguido pelo corredor lateral. Mas os dragões optaram pelo corredor direito já devidamente preparados para a entrada em zona de finalização de vários elementos, sendo que a colocação de Samu em situação de confronto individual já estava no capítulo. Acima de tudo bem gizado e, também, definido de acordo com um almanaque coletivo em que o treino e o laboratório se sobrepõem em relação ao impulso.
Nos laterais, sobretudo nos laterais de equipa grande, há uma característica que se sobrepõe: a capacidade de jogar em zonas interiores ou exteriores com o mesmo rendimento, para que o mesmo lateral possa adquirir valências de médio e de extremo consoante as necessidades do momento ou do adversário. Daí ter sido Francisco Moura e mais nenhum outro. Daí Francisco Moura ter saltado de imediato para o onze titular sem qualquer tipo de hesitação e com aquela certeza de que o desempenho seria qualificado independentemente das circunstâncias. Daí que o FC Porto esteja para as curvas e para os títulos. Por direito.