Artigo de opinião de Gil Nunes.
As ilações ainda são prematuras até porque o ramalhete de adversários – Santa Clara, Estrela Vermelha e Boavista – não apresenta o nível de exigência suficiente para o Benfica passar ou não no teste do algodão. Seja como for, os encarnados estão melhores e mais estáveis. Com um novo modelo de jogo – mais assente num 4x3x3 – e a saber o que pretende em campo. Em todos os momentos.
A questão é transversal ao Benfica: não é possível adquirir-se um nível mínimo de consistência quando o treinador está sempre a mudar os jogadores de sítio. Depois de Aursnes – severamente prejudicado por efetivamente ser um bom jogador – chegou o dossiê Kokcu: com Schmidt ao comando, o turco foi médio ofensivo, médio centro numa linha de dois, extremo esquerdo, extremo direito e por aí andaria num cenário de polivalência alienada caso o banco do Benfica não tivesse sofrido o inevitável terramoto.
A melhor notícia de sempre: se, no final da temporada passada, Kokcu era quase um excedente (e dos caros), ou um quase nada, no atual momento passou a ser um quase tudo. O melhor jogador dos encarnados e o personificador de um novo modelo definido de acordo com a exploração máxima das suas capacidades. O pilar que sustenta o edifício.
E o que é que falta, sobretudo, ao Benfica? Critério e criatividade no meio-campo, em virtude de a panóplia de jogadores existentes apresentar virtudes significativas em todos os domínios (recuperação e aceleração sobretudo) mas sem aquele lampejo de passe (leia-se talento) que é exigível a uma equipa grande. Também falta capacidade nos duelos individuais é certo – que pode ser maquilhado na maior parte dos confrontos.
Mas o problema não é propriamente uma tragédia: de forma inequívoca, não faltam predicados a Kokcu para resolver o problema e, também, é perfeitamente natural que o Benfica possa atuar somente com Florentino como médio-defensivo (isolado), pois tal também esbarra no ADN natural de equipa grande. Que arrisca. Não tem medo.
De acordo com aquilo que se viu quer na segunda parte diante do Estrela Vermelha (mais contenção é certo) quer diante do Boavista, Bruno Lage quer fazer ainda melhor: garantir a eficiência do miolo através da colocação de Aursnes no onze (e para ficar) e possibilitar que a criatividade de Kokcu seja oferecida à equipa em zonas mais adiantadas. A questão levanta-se: será que Aursnes tem o critério suficiente para fazer com que, mesmo de forma involuntária, a dupla de médios-defensivos não se repita? A resposta parece ser sim.
É verdade que o norueguês não é um tecnicista por excelência mas a compensação faz-se através da riqueza de movimentos que originam roturas na linha defensiva contrária e, sobretudo, na inteligência para bloquear de forma rápida as transições dos adversários. E existe a questão da prioridade indireta: sobretudo porque vai enfrentar um número significativo de equipas definidas por blocos baixos, o Benfica necessita urgentemente de um jogador com capacidade criativa um pouco mais à frente. E que represente quer o foco de proteção a Di Maria, quer a fonte de alimentação permanente a Akturkoglu. Ou seja, com Kokcu mais atrás e com Rollheiser no onze, os encarnados perdem essa pequena linha que, não sendo propriamente um problema bicudo, acarreta algum atrito quando a ideia passa por se melhorar o desempenho no último terço e, acima de tudo, tornar o Benfica mais letal e perigoso.
Em tempo de afinações, as atenções também se centram à retaguarda. Alimentadas por um Álvaro Carreras que parece ser bem melhor do que aquilo que aparentava, sobretudo pela sua capacidade técnica e de potenciação conjunta de jogo interior e exterior. Mas o problema parece residir do lado contrário: é que Kaboré, definitivamente, não entrou bem diante do Estrela Vermelha, com um conjunto de movimentos de quem está completamente perdido no aeroporto e não sabe para onde ir. É lógico que tal se resolve com trabalho e com treino mas, para já, impõe-se a colocação de um jogador (Tomás Araújo) que é severamente cumpridor do ponto de vista defensivo e que, pelo menos, impede males maiores. Mas também é certo que Tomás Araújo – quer pelo perfil do próprio quer pela escassez de soluções no centro da defesa – será sempre uma solução de recurso e nunca uma aposta pertinente no molde de um jogador a uma nova posição dentro de campo.
Com aquela ligeira impressão de que Pavlidis não está assim uns furos tão acima de Arthur Cabral como se poderia pensar à primeira vista, os próximos tempos passam pela potenciação da equipa (sobretudo no último terço) sempre com os pés bem assentes no chão. Na realidade dificilmente (para não se dizer que é uma utopia) alguém poderá pensar que o Benfica vai atingir, nesta temporada, o mesmo nível de entrosamento e solidez tática que é apresentado pelo Sporting. Ou mesmo conseguir enfrentar um FC Porto que, apesar de estar em reconstrução, tinha uma base de trabalho substancial proveniente da temporada passada e que está a ser aproveitada e capacitada em conformidade.
Reconstruir uma equipa semidestruída com a perspetiva não da classificação imediata mas sim de um futuro mais próspero e onde se sabe aquilo que se pretende. Se o furacão Schmidt deixou uma tática manta de retalhos e pontos de interrogação em quase todos os setores do campo, o objetivo próximo passa pelo diagnóstico e pela terapêutica. Com os pontos possíveis dentro de um espectro de uma equipa que, mesmo melhor, ainda está em período de convalescença. E com o estado de alerta bem ativo.