
Artigo de opinião de Gil Nunes.
O Sporting faz lembrar a história do restaurante de francesinhas que viu o estabelecimento mudar de gerência: a receita é exatamente é a mesma e os ingredientes são provenientes do mesmo fornecedor. Nas mesmas quantidades. O problema é que, nas contas do produto final, o molho tem um sabor completamente diferente. Sem se perceber a causa. A razão. Mas o molho não ficou tão bom. Ficou pior. E a malta deixa de ir ao sítio do costume.
Por partes: não é nenhum cataclismo perder frente ao Arsenal. Ponto. É claro que levar cinco golos em casa no primeiro jogo europeu em que somos timoneiros não é propriamente o cenário mais agradável de sempre. Até porque, para os lados do Sporting, convém passar a mensagem de que João Pereira sucede a Rúben Amorim num processo sem quaisquer atropelos. Sem hiatos. E que, no final das contas e mais coisa menos coisa, o Sporting vai continuar a ganhar. E a liderar.
Acima de tudo, e mais do que a superioridade numérica no miolo que confundiu o cenário verde-e-branco na primeira parte, importa reter a “gafe” de João Pereira, que assumiu proporções bíblicas. E de forma justificada. Em primeiro lugar, porque João Pereira tem de falar com pinças: é que o discurso do seu antecessor era de Liga dos Campeões: tudo ponderado ao pormenor, naquele estilo de quem está a beber umas cervejas na esplanada com os amigos. Que, no fundo e no genuíno, até cola muito mais do que o discurso formal e engravatado que seria a antítese daquilo que é Rúben Amorim. Tudo no hemisfério certo. Equilibrado.
É que a última coisa que João Pereira pode e deve dizer é que o jogo foi “um erro de casting”. Por uma razão principal: porque as palavras, mesmo fora do contexto da mensagem, tendem a resvalar para a sua condição frágil enquanto recém-apontado treinador do Sporting; depois, também por uma razão secundária: por muito que se compreenda o que na realidade se pretendeu transmitir, certo é que João Pereira gera a dúvida e não tem a necessária almofada de segurança (leia-se ciclo de vitórias) para dizer tal afirmação sem se colocar a jeito.
É que anda tudo aos círculos e a parar num mesmo ponto: o Sporting de Amorim tinha muita da sua força assente no poder da mensagem utilizada. E não se pode passar de cavalo para burro. É certo que os erros fazem parte do processo, mas um erro tão grande nesta altura desapropria João Pereira da sua condição de hipotético técnico vencedor. O contra-argumento existe e justifica-se: o Arsenal não se pode comparar ao Amarante e Amorim também encaixou cinco do Ajax em casa. O problema esteve no pós-jogo. Pelo caminho errado. E pior a emenda do que o soneto: se o “erro de casting” já é mau, entrar no “diz que disse e afinal não disse” ainda é pior e mais retumbante. Assim como tentar emendar a situação com o habitual pró-forma: “o responsável sou eu”. Frase mil vezes repetida. Ao expoente da loucura.
Porque até poderia colorir a análise do jogo com outro pincel: a reação que o Sporting teve no início da segunda parte, mesmo a perder por três a zero. E não há que censurar a inclusão de Edwards no onze em detrimento de Daniel Bragança. São opções e o Sporting não podia percorrer o mesmo trilho que percorreu diante do City: simplesmente não atacar na primeira parte e ficar encostado às cordas à espera do desacerto do adversário. Por aí nem pensar. Mas a questão é outra: é que Pedro Gonçalves faz mesmo muita falta. E a sua ação foi decisiva para o Sporting ultrapassar o City: é que o seu recuo estratégico, no início da segunda parte, permitiu que os leões reajustassem as suas zonas de pressão e, mais do que isso, desbloqueassem a situação de superioridade numérica que estava a condicionar a harmonia do meio-campo. E, numa lógica de sistema, também a impedir a construção dos centrais leoninos, uma importante casa de máquinas de acordo com a prevalecente filosofia de jogo Amorim.
Se a derrota em si pouco afeta um excelente percurso na Liga dos Campeões, o resultado trouxe consigo outro problema. A rápida resposta ao imponderável e ao caos. Porque Amorim reagiu em Braga no tempo certo, recuperando um jogo à partida perdido. É certo que tal leva tempo e erro e, no almanaque, é sempre um ponto de diferenciação e nunca de julgamento das capacidades técnicas de João Pereira. Mas que dava jeito acordar a tempo, lá isso dava. Mais que não seja para capitalizar as tropas em torno de um sentimento de revolta que faz milagres. E que se replica noutros embates pós um Arsenal que não se pretende traumático.
Num jogo recheado de pontas soltas, os próximos capítulos trarão a necessária resposta. Ou as dúvidas se exponenciam e multiplicam, ou então o embate diante do Arsenal serve de lição a afixar no próprio placard do laboratório de Alcochete. O tiro não foi nos pés mas andou lá perto. E candeia que vai à frente continua a alumiar duas vezes. Ou então que o Sporting não se ponha a jeito de ser o Botafogo da liga portuguesa – que possuía uma vantagem significativa e acabou por perder o Brasileirão.